Invernáculo

Esta língua não é minha,
qualquer um percebe.
Quem sabe maldigo mentiras,
vai ver que só minto verdades.
Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.

(Paulo Leminski)

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Doadora de órgãos

Quando te vi

Te doei meus olhos de pronto

Os ouvidos, levei um tempo

Mas com eles, te dei meus ombros.

Em algumas horas, ombros colados

Histórias partilhadas e

Meus olhos perdidos no escuro

Captavam o que a fraca luz

Denunciava dos teus gestos

Narinas atentas...

Caçando seu medo e excitação

No ar.

A boca não calava, no nervosismo

De preencher o silêncio e o escuro

Mas de insuficiência de assunto

A conversa morreu.

Te doei as mãos vagas

Tateando as tuas no breu

Se eu doasse o suor, te banhava

Medo e apreensão

Desejo, tesão

Cortinas dágua enfeitam minha vergonha

De tudo o que de fato sinto, no fundo

E não posso te doar...

Desperto.

Meus sentidos fizeram certo.

Suas narinas me detectaram

Antes que eu pudesse

Disfarçar

Então as bocas se tocaram

Saliva, euforia, vontade

Transfusão de desejo

Fluxo saturado

Correntes contínuas e alternadas...

Choque.

Para um coração que se detém

Interrompe a batida

Segura a pulsação,

Choque.

Algo que recobre os batimentos,

Mãos suando, boca salivando

Tudo treme, confusão

Desorientação

Taquicardia

Membros autônomos de

Apreensão e desejo

Te sinto no escuro

Abro o peito sem aparelhos

Abro a boca pros teus beijos

Me invade a língua e essa fissura insana

Abro as pernas, finalmente

Te dou o júbilo de meus portais

O calor, o mel, o macio

Da profundeza, meu cio

Te recebo tenso e teso

Num calor ainda maior

Febre

Convulsão, nervos e músculos

Em explosão

Ao menor movimento.

Tremores e soluços

Hesitação

Parou diante dos portais

Não seguiu a luz

Ressucitamento

Renasci e renasceu

Suados e trôpegos

Sufocados de paixão

O corpo não responde

E a alma está perplexa,

Pairando sobre os corpos

Ouvidos abafados

Mãos descrentes

Olhos semi-cegos em meio ao

Sagrado silêncio e breu

Profanamos tudo isso

Com a ânsia e o dispudor

Da carne crua a se chocar

Dentes cerrados de tesão

Trocamos fluidos, olhares

Sorrisos nervosos na escuridão

Sem quase conseguir te ver

Sei o que faiscava nesse olhar,

Eu soube desde o primeiro.

Só sei, que, de corpo inteiro

Em cada célula ainda sou tua

Encharcada de suor e saliva e sêmen

Semente do eterno desejo

Eterno nó em minha garganta.

Cuspiste minha entranhas

Essa artéria ainda pulsa, estranha

E o sangue jorra sem estancar.

Me pergunto como respiro

Sem teu cheiro no ar

Pulmões teimosos

Não para de inflar.

Na fila do transplante

Aguardo ansiosa

Por um coração q não apanhe

Nem bata por você.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Paixão

O problema é que eu preciso
Estar apaixonado
E você atende perfeitamente
A essa esdrúxula necessidade.

Você conta as mentiras que
Eu quero ouvir
Conta as histórias
Palavras cheias de mel...

Eu preciso romantizar...
Preciso pensar que neste
Exato momento
Você está neste avião
Que acaba de passar zunindo, cortando meu telhado...

Tenho que entrar no chuveiro
Sentir a água quente me abraçar
E pensar no teu calor...
Tenho que imaginar que neste
Exato momento
Você mergulha alguma banheira
Pensando em mim...
Abraçando algum travesseiro
Fuçando alguma página de internet, na solidão
Preenchendo o silêncio com alguma canção
De nós dois...

Eu preciso dessa paixonite pra viver
É a droga mais doce,
É o que não abro mão
E me custa o sorriso e os dentes.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Velhos sorrisos velhos

Olho voces todos
Os enxergo sorridentes
Renitentes e reticentes
Sorrisos amarelos e sarcasmo
Essa cara de covarde
Todos vocês tem em comum.
Olho vocês
Daqui, desse dia perdido no futuro
O estático e imóvel passado
Inexorável e inútil
Tento achar algo
Alguma resposta
Busco o que cada um
Tinha em comum
(além da covardia)
Algo disso deve ajudar
A entender essa mania
De não deixar as coisas
Passarem
Olho pra vocês –
Meu estômago embrulha
Foram muitas
Cobras e lagartos
Muitos sapos embrulhados
Em lindos papéis de
“eu sinto muito” e
“eu não sou capaz”
Os piores e mais bonitos:
“Você sou eu de saias”
Ah, que lindo!!!
Mas o fato é que nenhum de vocês aguentou
Todos fugiram de alguma forma e agora
Meu estomago pesa
Por tanta porcaria que engoli
Não quero vomitá-las em vcs
Pra vocês eu guardei
O gosto do “quase”
Do “talvez”
Do “pudera”
Pra vocês eu deixo a dúvida
A incerteza
O cotidiano morno
O café que esfria
O erro repetido e repentino
A cara pálida no espelho
Pra vocês eu deixo
Meu sorriso de canto
Meu olhar Capitu
Vocês não tiveram as manhas
Não tiveram força, coragem, opinião.
Sou mais macho que vocês
Todos juntos
Não dou o troco
Porque de mim nada compraram –
Eu nunca estive à venda.
Pra vocês eu deixo a miséria
E a pobreza do que fizeram
Deixo a mesquinhez
Guardada em vossos bolsos
E a covardia atrás dos
Velhos sorrisos velhos
Velhacos! Nojentos!
Pra vocês eu deixo
Meu perfume no ar

E a certeza do “nunca mais”.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

A Tempestade - Legião Urbana


Será que eu sou capaz
De enfrentar o teu amor
Que me traz insegurança
E verdade demais?
Será que eu sou capaz?
Veja bem quem eu sou
Com teu amor eu quero que sintas dor
Eu quero ver-te em sangue e ser teu credor
Veja bem quem eu sou
Trouxe flores mortas pra ti
Quero rasgar-te e ver o sangue manchar
Toda a pureza que vem do teu olhar
Eu não sei mais sentir

Qualquer coisa

No lusco-fusco
Desse dia que não amanheceu
Dessa chuva que não choveu
Dessa tarde que se arrastou pela manhã
Avessa
Adentro
Esse peso todo pairando no ar
Um silencio abafado me conta
Das coisas que quero saber
Tudo são perguntas
E a brisa se nega a fornecer respostas
A ouvidos surdos como os meus.
Que vida esquisita. Quanta coisa estranha
Não sei mais de ti
Dela
Do fim
De mim
Não sei mais
Sobre dias e noites e
Calores e gelos
Não sei mais sentir
Não sei mais ser
Minha
Angustia
Ferida
Não sei mais olhar
Amar
Esperar.
Quero que tudo se foda.
Não vamos sair dessa vida
Vivos, de qualquer forma.
Qualquer coisa

Pode ser o que invento.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Cinza

Ele acordou, abriu a janela
Viu o céu
Revolto vento bateu
Céu cinzento
Não imaginava
Mas ela estava cinza também
Ele segue e faz suas coisas
Mas não esquece
Um segundo:
Como aquele rosto de menina
Se torna a cara
De sacana que ele tanto ama!?
Ele é capaz do pior crime por ela
E ela finge não se importar
E também finge se derreter
Ele é um maloqueiro
Ela é uma atriz
Será que no não-acaso da vida
Eles vão se resvalar?
Quantas luas ela precisa
Pra convencê-lo
De desistir
Ou de vender de vez
A alma?

Ele abriu a janela

E o vento era ela.